terça-feira, 6 de outubro de 2015

UM BATE-PAPO COM O EXPERIENTE PROFISSIONAL FUNERÁRIO ANTÔNIO MARCIO DA SILVA, DE 65 ANOS







 Cássio Ribeiro

Faltavam uns 20 minutos para as 17hs da última sexta-feira, 2 de outubro, e minha intenção era poder produzir fotos das imagens em mármore carrara e pedra sabão que dão ao cemitério Nosso Senhor dos Passos, em Guaratinguetá, no Vale do Paraíba paulista, o título de galeria de arte a céu aberto.



O horário de fechamento do cemitério é às 17hs, mas eu precisava estar lá dentro entre às 17h30 e 18hs. Conversei com um dos funcionários sobre a necessidade de estar lá dentro ao cair da tarde para fazer as fotos com uma iluminação do dia não muito intensa.


Ele me disse que perderia o horário do ônibus, e eu me prontifiquei a levá-lo depois em casa, no bairro Jardim do Vale, e perguntei se podia ficar até por volta das 18hs. 


 O funcionário então foi até o portão, fechou as duas bandas unindo-as numa só porta grande de ferro que impedia a passagem, passou a corrente sobre o encontro das duas metades e bateu um cadeado médio que ligava e trancava dois elos da corrente ao mesmo tempo, depois sentou-se calmamente sobre um túmulo e disse que eu podia ficar à vontade, o quanto quisesse e sem pressa alguma.
 



Parti cemitério dos Passos adentro sozinho naquele fim de tarde, com o portão trancado, em busca do tão por mim esperado ensaio fotográfico, que será publicado aqui no blog outro dia.
 



Deixei lá sentado perto da entrada trancada, o outro único ser humano vivo naquele campo santo aquela tarde. Desapareci da vista dele entre quadras, lotes e túmulos. O funcionário que, por volta das 17hs, deixou-me à vontade e sentou-se pacientemente a esperar, chama-se Antônio Marcio da Silva, de 65 anos, dos quais, 37 são dedicados a todos os tipos de serviço no cemitério Nosso Senhor dos Passos (reformas de túmulos, limpeza, sepultamentos e exumações).





Seu Antônio trabalhou por 32 anos na Santa Casa de Guaratinguetá, sempre no cemitério dos Passos; aposentou-se e, há 5 anos, além de ser aposentado, retornou voluntariamente ao trabalho para receber também a remuneração que ganha como recontratado. Ele conta que, quando ia completar 9 anos atuando profissionalmente nos Passos, foi convidado para trabalhar na empresa BASF, mas preferiu continuar com os seus trabalhos no cemitério .




Perguntei a Antônio Silva se ele já tinha visto ou ouvido algo sobrenatural nesses 37 anos de trabalhos no cemitério; ele respondeu: “A Globo e a Record já vieram aqui me perguntar se eu já vi alguma coisa... Eu digo: O que é que eu vou ver?! O que é que eu posso ter visto?! Me diz?! Depois que a pessoa morre, o espírito vai entende? Vai!”, afirma Antônio, enquanto gesticula com as mãos simulando algo que sai do corpo e se afasta.


Perguntei também a ele o que mais o havia abalado nessas quase quatro décadas trabalhando nos Passos, e ele disse: “O que mais me abalou foi fazer o enterro de um parente, Benedito Cipole (não se recorda a data precisa), mas eu fiz até o fim me mantendo forte... As pessoas diziam: como você pode enterrar assim seu parente sem demonstrar emoção, mas eu estava emocionado por dentro sim, naquele momento”, conta Antônio, e completa dizendo que algo que mexe muito com ele é ter que fazer enterros de crianças. O profissional afirma que sempre pede para outro coveiro fazer o serviço quando o sepultamento é de uma criança, e conclui dizendo que não aguenta mesmo fazer.


Essa conversa se deu depois que fiz a primeira sessão de fotos e voltei do emaranhado de túmulos até perto da saída, pois ouvi alguém me chamar (tipo um EI!!) e, para mim, naquele momento, só podia ser o sr. Antônio; eu achei que ele estava querendo ir embora, a me chamar.


Voltei ao portão até seu encontro e lá estava ele sentado normalmente. Me disse que não tinha pressa. Depois da breve conversa sobre ele já ter visto ou não alguma coisa nos Passos, voltei normalmente para o labirinto de sepulturas. 

Parece que meu cérebro, até por uma tentativa de controle dos pensamentos, controle da mente em si, extinguiu qualquer possibilidade do sentimento medo em mim naquele momento.




Tentei agir com a frieza de um monge zen budista; sei que não cheguei nem perto, mas consegui manter sempre o centro, a calma. Afinal, para mim, em volta havia apenas folhas secas, secas como as que caem das árvores no outono para darem lugar a novos brotos na primavera, no caso especificado bebês; a vida é assim, cíclica mesmo em todos os sentidos. 


Fiquei calmo, calmo como seu Antônio, que talvez também estivesse a querer me "trolar" e divertir-se naquele fim de tarde com meu possível desespero (risos).


Mas tudo bem. Voltei tranquilamente para o meio dos túmulos em busca dos ângulos das obras de arte. Sempre estive consciente do respeito que carregava ali ao fazer o trabalho das fotos. Recolhi uma flor de plástico caída e a coloquei novamente no encaixe de seu ramo artificial num vaso sobre um túmulo de mármore negro. Peguei alguns vasos virados, talvez tombados pelos gatos ou pelo vento, e os ergui à posição inicial novamente.



Uma cena me chamou a atenção bem no fundo dos Passos, na parede oposta à entrada, só que no canto, quase no canto esquerdo ao fundo, a partir da entrada. 


Senti algo muito bom quando vi uma imagem que se destacava visualmente em tom de ternura naquele desértico silêncio em meio aos túmulos, e percebi que o budismo estava ali também, presente ao alcance de todos. 


Me veio a reafirmação, experimentando meus próprios sentimentos, de que o céu e o inferno são projeções da nossa cabeça, da nossa mente apenas. Ao ver a imagem abaixo, pensei e senti isso em mim.





Falo tanto em primeira pessoa neste texto porque foi realmente algo particular do meu EU; uma experiência pessoal e marcante. E aproveito ao mesmo tempo para fazer uma espécie de “making off” escrito do trabalho fotográfico que será a próxima publicação deste blog.



Já eram 17h52min, quase noite e eu já tinha feito as fotos para o ensaio. Também tinha a intenção de, no momento da Ave Maria, às 18hs, já ter deixado aquele campo santo em devida paz. Estive ali em atitude extremamente respeitosa.



Me dirigi até a saída. Enquanto andava, ouvi algo outra vez, tipo um “psiu” de sonoridade fina, quase um assobio, sobre o qual tenho quase a certeza de que foi emitido do lado de fora do muro, ou então seria mais uma tentativa de pegadinha do seu Antônio; depois ainda vou perguntar isso a ele, mas é claro que o Homem vai negar. É lógico.


Dizem que o medo fabrica tipos de alucinações, mas eu estava bem tranquilo e sereno; o som do assobio foi breve e bem real. Saímos dos Passos e fui levar seu Antônio em casa, conforme o combinado, no bairro Jardim do Vale. 




Durante o trajeto, no carro, ainda conversamos mais um pouco e Antônio Silva me disse que a grande lição que ele tira nesses 37 anos trabalhando nos Passos é a de que na vida deve-se viver com alegria a cada momento e não se apegar tanto aos bens materiais, pois no final tudo é igual para todos, e que nós, de fato, não somos nada.


Seu Antônio  também contou que a média de sepultamentos nos Passos é de dois por dia: “às vezes fica dias sem serviço; de repente, vai ver, chegam 12 de uma vez só”, completa o profissional funerário Antônio.

 





4 comentários:

  1. Homem cético, desde criança nos ensinou que devemos ter medo e dos vivos.
    Mais nunca deixou de contar as histórias que outros contavam ali.
    Parabéns pela reportagem! Adorei!

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  2. Nos lugares mais improváveis encontramos a vida em profusão, pois na verdade ela está em tudo. Belo texto, sensível e crítico. Os invisíveis existem, apesar de não serem notados.

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