Por Cássio Ribeiro
No lugar do choro daquele que acaba de deixar o útero materno, o som do primeiro filete de água que escorre ao desprender-se das entranhas da terra no local conhecido como Lagoa, no alto dos Campos da Serra da Bocaina, dentro dos limites do município de Areias-SP, a 2 mil metros de altitude aproximadamente.
Assim
vem ao mundo o senhor Paraíba do Sul "da Silva", um dos brasileiros
mais importantes que nascem e morrem dentro da Região Sudeste. Na
nascente, o ar gelado e puro do alto da serra e o perfume da mata
proporcionam um frescor nas vias respiratórias que lembra a sensação das
balas mentoladas.
O personagem mais antigo e importante do Vale surge dentro de uma grota coberta por densa vegetação. A água sai do chão e começa a correr por uma pequena valeta na parte mais baixa do terreno, num modesto fluxo com a mesma intensidade daqueles dos cantos de rua em dias de chuvas fracas.
"A água das chuvas se infiltra nas regiões mais altas e satura o solo. Em determinado ponto do terreno com característica côncava, a água aflora muitas vezes repleta de minerais que entrou em contato nas camadas subterrâneas durante a infiltração", explica o geógrafo Fábio Cox de Britto Pereira, de São José dos Campos.
Depois de vir ao mundo, alguns metros mais adiante, o jovem Paraíba do Sul sai da mata onde nasce, corre através de uma curta canaleta e despenca numa singela queda de aproximadamente meio metro.
Primeiro salto da água do Paraíba
A nascente, que é a principal e mais alta de toda a bacia do rio Paraíba, marca o início do rio Paraitinga — rio de águas claras em Tupi Guarani — e está a aproximadamente 35 quilômetros do litoral de Mambucaba, no estado do Rio de Janeiro. Porém, o relevo íngreme da Serra do Mar, obriga o curso d’água a percorrer uma distância de cerca de 1380 quilômetros até chegar ao Oceano Atlântico, no norte do estado do Rio de Janeiro; formando assim, com uma vasta rede de afluentes, uma das mais importantes bacias hidrográficas da América do Sul.
Para chegar à
nascente, deve-se seguir pela rodovia Presidente Dutra até o trevo que
fica próximo à cidade de Cachoeira Paulista/SP e, a partir daí, rumar em
direção a Silveiras/SP pela rodovia SP-66.
No portal de Silveiras, o
turista deve entrar à direita e seguir em direção ao Bairro dos Macacos.
A rodovia é asfaltada, porém, sem acostamento e muito sinuosa. São 30
quilômetros de percurso que sobe a Serra da Quebra Cangalha, passa pelo
lugarejo Bom Jesus e chega ao Bairro dos Macacos, que possui cerca de
600 habitantes.
O
Bairro dos Macacos parece perdido e encravado no meio da serra. No
local, o guia perfeito para a subida até à nascente do rio Paraíba é seu
Helinho Mecânico. Fazendo jus ao apelido, o quintal de seu Helinho
Mecânico é cheio de carros em pedaços: um fusca completamente retalhado,
outro sem motor e um terceiro aparentemente inteiro; além de dois
jipes, um de fabricação nacional e outro norte americano. O mato por
cortar invade carcaças em pleno clima frio das escarpas da serra da
Bocaina.
Seu
Helinho Mecânico é muito falante. Com seu inseparável boné azul,
enquanto esquenta a água em uma chaleira sobre o fogão à lenha para
fazer café, se alegra ao falar sobre a nascente. Conta que o volume de
água onde brota o Paraíba nunca se alterou, mesmo nas estiagens mais
rigorosas. Revela ainda que próximo à nascente vive um personagem
solitário: seu José Lima, sujeito de pele escura que se retira para
trabalhar na roça durante o dia, e que também costuma conversar com um
velho rádio AM, concordando com as ofertas anunciadas e debatendo com o aparelho quando discorda de alguma notícia.
No percurso até a
nascente, que tem início no Bairro dos Macacos, são mais 26 quilômetros
de estrada não pavimentada, que se embrenha pela Serra da Bocaina
adentro.
Outra dica de seu Helinho Mecânico é subir com fusca ou jipe
bem cedo, após o raiar do dia, pois no fim das tardes de primavera e
verão, as chuvas costumam castigar o alto dos Campos da Bocaina. A água
misturada com o barro da estrada termina em atoleiro certo.
A vista do Alto da Bocaina compensa o esforço da subida. Pode-se observar, bem abaixo, a Serra da Quebra Cangalha e o Vale do Paraíba Paulista, ao norte, coberto por densa bruma. Ao fundo, a Serra da Mantiqueira forma generosa moldura elaborada pela natureza. Os Campos de Cunha estão a oeste e os cumes da Serra do Mar completam a esplendorosa vista, ao sul.
O outro formador do rio Paraíba do Sul é o Paraibuna, que nasce no Bairro da Aparição, na região dos Campos de Cunha, bem mais abaixo que a nascente considerada a principal, na Serra da Bocaina.
O nome Paraibuna
quer dizer rio de águas turvas na língua indígena. "Apesar de limpo, o rio nasce em uma região rica em sedimentos que escurecem a água",
diz o ambientalista Fernando Celso, de Guaratinguetá, que desenvolve o
projeto de elaboração de um livro sobre o rio Paraíba do Sul.
O Paraitinga e o Paraibuna são represados e formam o lago da barragem de Paraibuna. O curso d’água que surge na vazão da represa é o rio Paraíba do Sul, que corre para o oeste, na direção da cidade de São Paulo e, curiosamente, a apenas 18 quilômetros do curso do rio Tietê, é impedido de tornar-se um afluente deste pela elevação do Planalto Paulista.
Por um capricho da natureza, que parece conspirar para que o Paraíba percorra longo caminho até o mar, o Rio faz a famosa curva de Guararema e entra no Vale a que dá nome, fazendo um giro de 180 graus e correndo para o leste, novamente na direção onde está sua nascente, só que agora em terreno bem mais baixo do que ela.
No sentido literal da expressão, o Vale do Paraíba parece mesmo pertencer ao rio Paraíba, que corre calmo, serpenteando pelo fundo da grande depressão longitudinal existente entre as Serras da Mantiqueira e do Mar.
Clique na imagem para ampliar
Imagem do satélite CBERS, na qual observa-se a Serra da Mantiqueira, ao norte, e o rio Paraíba do Sul, em preto, serpenteando pelo fundo do vale a que dá nome (Vale do Paraíba). O Paraíba tem o sentido de suas águas da esquerda para a direita da imagem, e passa pelas cidades paulistas de Guaratinguetá, Lorena, Cachoeira Paulista e Cruzeiro, cujas formas urbanas podem ser percebidas em tom de rosa na imagem
Na bacia do médio Paraíba, que se estende de Guararema/SP até Cachoeira Paulista/SP, a declividade média do curso d’água é de 19 centímetros por quilômetro, e as principais atividades econômicas são a agropecuária e a industrial. A baixa declividade faz o Paraíba correr de forma sinuosa. A navegação é impedida por saltos, corredeiras rasas e alguns trechos curtíssimos de alta declividade e encachoeirados.
O Paraíba correndo tranquilo em seu trecho paulista, num fim de tarde em Guaratinguetá
A Bacia do rio Paraíba possui
uma área de 57 mil quilômetros quadrados e se estende por São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro,
sendo formada por 180 municípios que despejam cerca de um bilhão de
litros de esgoto por dia no Rio, além do lixo orgânico e industrial
equivalente ao produzido por quatro milhões de habitantes. "As
corredeiras, em certos pontos, contribuem para a oxigenação da água, que
acaba facilitando a decomposição da matéria orgânica pelas bactérias. O
rio acaba, em parte, se purificando naturalmente", afirma o engenheiro ambiental Sérgio Pereira, de Guaratinguetá.
Manilha que desemboca no Paraíba do Sul, em Guaratinguetá
Mesmo com
as agressões, a própria natureza cuida da purificação parcial do Paraíba
nos trechos em que a água do Rio é oxigenada pelas corredeiras
Apesar da intensa poluição no trecho paulista do Paraíba do Sul, ...
a tradição da pesca no Rio, herdada dos índios que vivam em suas margens antes da chegada dos portugueses por aqui, permanece viva na região valeparaibana paulista
PERSONAGEM DO RIO PARAÍBA DO SUL
(JORGE DAS PANELAS)
Em junho de 2006, como relata o texto abaixo, nossa reportagem flagrou de forma casual um típico personagem do rio Paraíba do Sul, em seu trecho de Guaratinguetá.
Seu Jorge das Panelas, naquela ocasião com 84 anos, não é mais visto pescando à beira do Rio, e não tivemos mais notícias dele. Esperamos de coração que ele esteja bem.
O texto e a foto abaixo foram publicados na extinta revista Pense, em agosto de 2006:
Quem passa pela ponte Dr. Eurípedes Zerbini, sobre o rio Paraíba do Sul, em Guaratinguetá, ao olhar para baixo, logo percebe um guarda-chuva preto preso a uma haste de madeira bem na margem direita do Rio. O conjunto serve como abrigo do Sol para seu Jorge Marinho Barbosa, de 84 anos, morador do bairro do Tamandaré, em Guaratinguetá. Ele pesca no trecho que fica em frente à praça onde está o monumento das Três Garças.
Seu Jorge nasceu em Silveiras / SP, de onde saiu há 72 anos, tempo em que afirma sempre ter pescado e comido peixes do rio Paraíba. O apelido "Jorge das Panelas" é resultado de muitos anos de consertos em panelas de pressão.
Seu Jorge das Panelas
Seu Jorge marca ponto todas as quartas na feira do bairro do Pedregulho e, aos sábados, na feira do Campo do Galvão, ambas em Guaratinguetá.
No Paraíba, ele pesca usando pedaços de carne como isca. Seu Jorge garante que existem algumas piabas que foram soltas na represa de Santa Branca e escapam quando as comportas são abertas para dar vazão ao excesso de água das chuvas.
Jorge das Panelas é carismático, simples e cheio de sabedoria popular. Um exemplo humano típico das raízes do Vale do Paraíba, quase em extinção nos dias de hoje, devido ao crescimento urbano das cidades da região.
CURIOSIDADES DO RIO PARAÍBA DO SUL
Foto: Portal VR
A cidade de Volta Redonda, no estado do Rio de Janeiro, recebeu esse nome por causa dessa curva que o rio Paraíba do Sul faz ao passar pela região onde a massa urbana da cidade se desenvolveu, como pode ser observado na foto aérea acima
Trecho do rio
Paraíba onde foi encontrada a imagem de Nossa Senhora Aparecida por três
pescadorres no século 18. Ao fundo, observa-se a Basílica Nacional
São extraídos
cerca de cinco bilhões de litros de água do Rio diariamente para
consumo. O setor industrial utiliza a metade. A outra metade abastece 14
milhões de pessoas que dependem das águas da bacia do Paraíba do Sul.
90% da população do Grande Rio de Janeiro é abastecida pelo lago do
Reservatório de Lajes.
O Paraíba do Sul, com seu volume de água e números estatísticos gigantes, chega ao norte do estado do Rio de Janeiro. Recebe seus dois últimos e maiores afluentes: os rios Pomba e Muriaé. Passa pelas cidades de São Fidélis e Campos dos Goytacazes, que estão há 12 horas de viagem por rodovia, a partir do Vale do Paraíba Paulista, e chega sereno ao 'fim' de uma longa vida, encontrando o mar em São João da Barra. Trata-se do segundo maior deságue em forma de delta da América do Sul.
Imagem de
satétilte com o registro do curso final do rio Paraíba do Sul. No
deságue, em São João da Barra / RJ, pode-se observar a coloração alaranjada
da água do mar, que é resultante da grande quantidade de sedimentos
barrentos levados pelo Paraíba até seu encontro com o Oceano Atlântico
Outra
imagem de satélite em escala maior que a anterior, mostra o detalhe da
foz do rio Paraíba, que é o segundo deságue em forma de delta da América
do Sul
Depois de serem maltratadas pelo homem
durante todo seu trajeto, ao receberem esgoto, lixo doméstico,
lixo hospitalar, lixo industrial e produtos químicos, as águas do rio Paraíba do
Sul, assim como as do rio Tietê em São Paulo, se recompõem parcialmente
por meio da própria magia da natureza, quase que por um instinto de
sobrevivência natural capaz de preservar a vida de um personagem tão importante.
Personagem que ajudou a escrever, seja no seu leito com a descoberta da imagem de Nossa Senhora Aparecida, ou em suas margens com o desenvolvimento das cidades por onde passa, uma parte significativa da História do Brasil.
Personagem que ajudou a escrever, seja no seu leito com a descoberta da imagem de Nossa Senhora Aparecida, ou em suas margens com o desenvolvimento das cidades por onde passa, uma parte significativa da História do Brasil.
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